Time Out: 'O debate sobre alimentação de base vegetal é difícil e emocional. Como o fazemos sem moralizar?'

Time Out: 'O debate sobre alimentação de base vegetal é difícil e emocional. Como o fazemos sem moralizar?'

  • Quinta-feira, 07 de Março de 2024

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Dedicado ao cinema fantástico e de terror, o Fantasporto tem um filme fora do comum na Secção Oficial Cinema Português. Muitos ficarão tentados a fechar os olhos a algumas cenas mais fortes, mas é preciso olhar para este tema. Pelo menos, é o que defende o criador de Carne: A Pegada Insustentável, o primeiro documentário português sobre alimentação plant-based, ou seja, de origem vegetal. Saído dos gabinetes do Parlamento Europeu, pelas mãos do eurodeputado português Francisco Guerreiro, é realizado por Hugo de Almeida, com quem já colaborou na série documental RBI: Um Caminho de Liberdade. Agora, falam sobre os malefícios do consumo de carne, para a saúde, para o planeta e, claro, para os animais que comemos.

No site do festival do cinema, há um texto que resume a inclusão de Carne: A Pegada Insustentável numa das competições oficiais do Fantasporto, onde “não é muito comum” a apresentação de documentários. Uma decisão que passou pela “qualidade e impacto” do filme, “num mundo onde tudo está a mudar devido às mudanças climáticas e ao seu dramático impacto em milhões de seres humanos”. Para os organizadores do festival, o documentário apresenta “uma resenha histórica e social da importância da evolução dos hábitos de alimentação e da necessidade urgente de mudança da alimentação, sobretudo nas sociedades mais avançadas”. A sessão está marcada para esta sexta-feira, 8 de Março, mas a Time Out já viu o filme e sentou-se a conversar numa videochamada com o eurodeputado independente, do Grupo Parlamentar Europeu Verdes/Aliança Livre Europeia, o financiador desta produção.

Carne: a pegada insustentável©DRO político brasileiro Ciro Gomes (que também aparece no documentário) ao lado de Francisco Guerreiro

“O Hugo de Almeida fez um trabalho muito construtivo na apresentação de um debate que é difícil, que é pesado, porque tem muita informação, e que muitas vezes é muito emocional”, começa por explicar o eurodeputado, num elogio ao realizador de Carne: A Pegada Insustentável. Sem moralismos, Francisco Guerreiro percebe que seja complicado pôr em causa o que muitos vêm como “uma questão identitária, cultural”, que passa pelo que comemos. Neste caso, a carne, num consumo que “muitas vezes está ligado com alguma componente emocional de memórias afectivas que são positivas”. O documentário inclui mais de 20 entrevistas a especialistas nesta área, nacionais e internacionais, como George Monbiot, biólogo, escritor e cronista no jornal britânico The Guardian; ou dos fundadores da Quinta das Águias, Ivone e Joep Ingen Housz, um santuário animal localizado em Paredes de Coura. E socorre-se de estudos e relatórios que podem ser consultados no site do documentário, que também funciona como uma espécie de guia para o veganismo. “Uma plataforma informativa, sem essa componente mais moralista”, descreve o eurodeputado.

“Ninguém está contra algo só porque sim”

Carne: A Pegada Insustentável fala para os consumidores, embora sem esquecer os responsáveis pela oferta de produtos oriundos da indústria agropecuária, e utiliza imagens vindas de produções dentro da própria União Europeia. “Uma das nossas preocupações foi focar também no documentário a realidade agropecuária da União Europeia para não termos sempre aquela desculpa de dizermos ‘ah isto é nos Estados Unidos ou na China, portanto não há regras, nós aqui temos os mais altos padrões de bem-estar animal’. Efectivamente, o que se vê é o contrário. Existe falta de fiscalização nestas unidades industriais, as pessoas com menos rendimento são as que normalmente são empurradas para nelas trabalhar e isto causa-nos também uma preocupação social”, alerta.

A este problema aliam-se ao bem-estar animal e ao foco no ambiente, levando Francisco Guerreiro a colocar a pergunta: “Qual é então o último argumento que nos agarra ou nos cimenta ao consumo de produtos animais? No fundo, é essa última questão que nós queremos levar a debate e depois, naturalmente, por sermos democratas e promovermos a liberdade individual, garantir que as pessoas fazem essa análise e depois tomam as decisões necessárias”, defende, numa tentativa de convencer as pessoas a modificarem a procura para pressionar uma mudança na oferta. E aponta uma das luzes ao fundo do túnel: “O que simboliza também este documentário é a apresentação de soluções, os agricultores e as pessoas que trabalham nesta área podem beneficiar, e por isso é que nós falámos que o sector do plant based está a crescer, podiam beneficiar desta transição ganhando, efectivamente, muito mais dinheiro”. O documentário dá um exemplo disso, na figura dos Enchidos Agromonte, que aumentaram as vendas do negócio à boleia das suas alheiras vegan.

Carne: a pegada insustentável©DRHospital Hayek, em Beirute

Guerreiro explica que a indústria agropecuária é “altamente subsidiada” e acaba por ser “externalizada” na gestão do SNS (Serviço Nacional de Saúde), onde se poderia aliviar a pressão ao diminuir os casos de, por exemplo, doenças cardiovasculares. O documentário mostra uma solução: o Hospital Hayek de Beirute, capital do Líbano, não serve carne nas suas refeições. E sugere outro tipo de soluções de financiamento. “Porque não abrimos a mente e investimos dinheiro público na transição para sectores mais produtivos, nomeadamente a produção de algas? Nós importamos na União Europeia 95% das algas que consumimos. É um sector que traria desenvolvimento tecnológico, porque precisamos de sectores tecnológicos que tenham colecta de dados, que saibam monitorizar os ecossistemas marinhos ou aquaculturas terrestres, que tragam jovens de algumas regiões que poderiam sair destas unidades mais industrializadas de pesca”, diz, acrescentando que “é só uma questão de nós também apresentarmos soluções, mostrar que ninguém está contra algo só porque sim”.

Um balde de água fria?

A conversa com o eurodeputado aconteceu no mesmo dia do balde de tinta atirado para cima de Luís Montenegro, cortesia dos já conhecidos activistas do Climáxico. E não resistimos à pergunta: um documentário que sai em defesa do clima poderá gerar mais frutos do que este tipo de acções de guerrilha? “Eu acho que sim, até pela coerência. Porque, por exemplo, no caso específico do Climáximo, é curioso. Se for ao site do Climáximo, não falam uma única vez de agropecuária. Para além de sermos activistas, temos que viver esse activismo e qualquer grupo de resistência ou de activismo climático que não aborda sequer a questão da agropecuária e a redução drástica ou mesmo a eliminação de produtos derivados de animais, para mim está a ser hipócrita. E, neste sentido, quisemos ser construtivos, percebendo a dureza dos factos que estão em marcha, mas sabendo que: primeiro, já existem muitos documentários que apontam para essa realidade mais dura, mais brutal e que nós não acrescentaríamos muito nesse prisma; mas depois também mostrando que, através dessa realidade que é dura, existem soluções para, no fundo, deixar na responsabilidade de cada um [...]. Sendo que, naturalmente, a responsabilidade não deve ser só individualizada; também deve haver uma responsabilidade colectiva. Os agentes políticos são importantes. Questionar as empresas e as indústrias para esta transformação também é fundamental. Portanto, acho que é uma mutualização da responsabilidade”.

Carne: a pegada insustentável©DRHugo de Almeida, em rodagem

No caso da opção por um trabalho documental audiovisual, o eurodeputado defende que é um meio que “consegue agregar muita informação em pouco tempo”, valorizando, mais uma vez, o trabalho do realizador, que consegue “sintetizar esta informação, tomá-la não só informativa, mas emocional, ao contar uma história e conseguir transmitir essa ideia que realmente é possível fazer diferente, que todos os passos são importantes”, fazendo a ponte entre “a comunidade científica e os hábitos diários de grande parte da população”. 

Uma história antiga

Isto de não comer carne não é uma moda dos tempos modernos. A certa altura, Carne: A Pegada Insustentável recua à antiguidade grega, em particular ao matemático e filósofo Pitágoras, que adoptou uma dieta vegetariana. Ou o jornal O Vegetariano (1909-1935), da Sociedade Vegetariana, criada há mais de 100 anos e que encontrou resistência do Estado Novo. Guerreiro explica este recuo no tempo: “Achámos que era construtivo fazer esta desassociação de que isto agora são os urbanos, esta nova new age de pessoas que acabaram por se distanciar do campo e do mundo rural. Não, pelo contrário, já existiam, e o documentário mostra isso: várias comunidades que pensavam até para além dos simples actos de comer, o que é que isto representa em termos de relacionamento com outras espécies, de relacionamento com o meio ambiente, de relacionamento entre nós. [...] Essas esferas de pensamento foram sempre esmagadas por visões unilaterais do mundo e, muitas vezes, ligadas com sistemas ditatoriais. Portanto, achámos muito relevante fazer essa breve história, certamente há muito mais, e até contextualizar com países árabes. Porque também é uma visão muito ocidentalizada, que nós aqui no Ocidente é que somos muito vanguardistas, mas já existiam também pessoas e pensadores do Médio Oriente em países árabes a pensar e a viver esta forma de estar.”

Além da sessão no Fantasporto, estão planeadas sessões em Setúbal, Faro ou Ponte de Lima (a agenda vai sendo actualizada no site do filme), organizadas por diferentes entidades que podem exibir o documentário nas suas comunidades. Aliás, é esse o objectivo desta produção que não tem metas comerciais. “Queremos que ele seja de livre acesso, que as pessoas tenham a possibilidade de o ver, de o partilhar, e portanto nesse sentido acho que é o serviço público também a funcionar”.

 

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