Francisco Guerreiro foi eleito para o Parlamento Europeu pelo PAN, deixou o partido em 2020 e fez o resto do mandato como independente, até agora.

Em Discurso Direto, diz ao NOVO que os restantes partidos – e a comunicação social – têm responsabilidades na ascensão do Chega, pela forma como o destacaram.

Agora, olha para o Parlamento fragmentado e defende que o combate à extrema-direita tem de ser feito “com ideias, com propostas”, e “não cedendo a populismos”.

Na análise que faz às políticas, considera que falta fazer muito em Portugal, nos oceanos, na agroindústria, “dependente de subsídios”, ou na floresta, que diz ser “um fracasso total”.

“Portugal poderia ser um pioneiro em matérias fundamentais”, afirma.

Vai deixar o Parlamento Europeu, mas continuará na política, ainda que sem atividade em qualquer organização. “Todos nós estamos sempre ligados à política”, diz.

 

Como é que olha para o quadro político que se formou? Ficou surpreendido pela fragmentação ou pela ascensão dos extremos?

Sim, aliás, o que nós vemos é o crescimento de um dos extremos, não foi dos extremos. Um dos outros extremos diminuiu substancialmente.

Exato.

Por um lado, foi positivo o crescimento das forças ecologistas. O PAN não conseguiu uma bancada parlamentar, eu acho que foi um falhanço da atual liderança, mas manteve, o que já que já não é mau. Mas o Livre conseguiu uma expressão muito grande. O Volt apresentou-se às eleições e, apesar de não ter nenhum resultado por aí além, conseguiu aparecer nos meios de comunicação social e, em certa medida, também mostrar-se ao público. Mas lá está, infelizmente, a composição do Parlamento foi maioritariamente condicionada pelo aumento da extrema-direita, o que, mais uma vez, me surpreende, até, sobretudo, pelos votos de pessoas jovens quando apoiam o movimento negacionista climático.

É natural termos visões diferentes na sociedade, mas visões altamente manipuladas de um grupo que tem na sua composição pessoas não só indiciadas, mas também condenadas por vários tipos de ilicitudes, quando os próprios apoiam ou dizem apoiar a limpeza de Portugal e, portanto, serem os mais nobres do combate à corrupção, é algo que não consigo racionalizar.

Mas também não nasce do nada. A exposição mediática do André Ventura, do Chega, não só nas redes sociais, mas nos meios de comunicação social empolaram este crescimento. Não nos esqueçamos que, por exemplo, quando em 2019 o PAN elegeu quatro deputados à Assembleia da República e, depois, o Chega elegeu um, pela primeira vez, a cobertura que foi dada ao André Ventura, nessa altura, foi sobejamente 20 vezes superior a quatro deputados do PAN. Não nos podemos desresponsabilizar do monstro que se criou, muitas vezes com a falta de contraditório, falta de análise, análise mais estrutural e crítica. E, agora, temos de lidar com este fenómeno de total vitimização. Parece que é tudo em volta do Chega, são os coitadinhos, são vitimizados, são boicotados.

Enfim, acho que a eleição para a vice-presidência [do Parlamento] de um deputado do Chega é um mau sinal para a democracia. Uma pessoa que promove o negacionismo climático, que é anti União Europeia e anti princípios democráticos, claramente contra a revolução de Abril, é um mau prenúncio para a nossa democracia. Acho que, aí, a cedência do centro-direita foi má, deveria ter encontrado junto das forças políticas democráticas e pró-europeias um consenso. Foi o primeiro sinal de que a coisa não estava a correr bem.

E como olha para o início do trabalho do Governo?

Eu trabalhei com alguns eurodeputados do PSD e mesmo com Nuno Melo [do CDS-PP], tenho boa relação com eles e temos conversas muito francas e conseguimos fazer esse diálogo, mas parece-me que começar logo com medidas do tipo de mudanças de logotipos não me parece de todo o centro do debate político, o que se deveria fazer.

Por exemplo, acho que Portugal poderia ter desde logo encetado esforços para reconhecer a Palestina como um país, como um Estado soberano, para caminhar no sentido de apaziguar o conflito nessa área e garantir também que não existe este apoio obtuso e quase cego ao governo de extrema-direita de Israel. Apoiar israelitas e o Estado de Israel é totalmente diferente de apoiar este Governo de Netanyahu, que tem na sua composição elementos altamente extremados.

Vamos ver como é que o Governo consegue garantir estabilidade, se não haverá eleições, entretanto.

O combate [contar a extrema-direita] deve ser feito com ideias, deve ser feito com propostas, deve ser feito em conjunto com os partidos que acreditam no aprofundamento da revolução de Abril, no projeto da União Europeia, e não cedendo a populismos.

Sou sincero, prefiro perder uma eleição defendendo o que considero correto para o futuro dos meus concidadãos a deixar-me levar por populismos só porque pode parecer bem para uma franja da população. E eu acho que é aí que se vai ganhar o debate à extrema-direita, é nos factos, é na argumentação, é na contradição do que eles dizem e depois do que eles fazem, mostrando às pessoas o que eles não são e que não devem ser instrumentalizadas por estes grupos altamente extremados e muito financiados a nível Internacional. Não nos esqueçamos de que eles estão muito bem organizados, partilham informações, partilham metodologias de comunicação; eles estão ligados a esferas de financiamento. Aliás, não é por acaso que a [Marine] Le Pen foi financiada por um banco russo e não foi financiada por bancos tradicionais.

Há uma série de matérias que devemos considerar, não só a defender os centros moderados e, portanto, o debate democrático, mas a combater arduamente tudo o que são extremos, sabendo nós que o grande extremo agora em Portugal e na União Europeia é a extrema-direita.

Olhando para as propostas eleitorais dos diferentes partidos, considera que as questões ambientais têm o peso que deviam ter na ação do governo?

Eu acho que não, até porque ainda não é comum [pensar] que a ecologia está diretamente ligada com o nosso modelo económico e social. Nós não podemos falar de habitação se a habitação não for condigna, que tenha condições de garantir que nós não só temos uma casa, mas que dentro da casa não passamos frio ou calor. Esta dinâmica de construção de casas climatizadas, com acesso a energias renováveis está diretamente ligada com o clima, mas [também] com a habitação. Na saúde, quando nós falamos do que consumimos, do excesso de proteína animal, por exemplo, os modelos produtivos que fazem com que milhares de pessoas sejam empurradas para o Serviço Nacional de Saúde com doenças crónicas que eram altamente evitáveis se nós tivéssemos uma abordagem de prevenção e com políticas agroalimentares que fossem realmente sustentáveis. Mas nós vemos que está tudo interligado quando olhamos para os modelos económicos, por exemplo, do combate à corrupção, do combate à evasão e à elisão fiscal, isto é uma matéria que está intimamente ligada com políticas ecológicas e, portanto, esta dissociação da ecologia da economia, com a política, da habitação, com a política de saúde, eu acho que é um dos grandes falhanços dos movimentos ecologistas, de um modo geral.

Enquanto as pessoas não compreenderem que está tudo interligado, que todos os nossos modos de produção, distribuição e consumo estão interligados com os recursos naturais que nós temos e devemos usufruir de modo sustentável e regenerativo – nós já passámos a fase até de gerir sustentavelmente, nós temos de regenerar os nossos ecossistemas – não vai haver esta perceção de que nós devemos ter esta visão holística.

Portugal podia ter um papel nesta evolução?

Portugal poderia ser um pioneiro em matérias fundamentais, como transição climática e política, a nível, por exemplo, das comunidades independentes de produção de energia. O que nós vemos agora são grandes concentrações, por exemplo, de fotovoltaicas, que acabam por centralizar o modelo de produção em grandes unidades industriais e não o contrário. Nós devíamos ter programas específicos de colocação de painéis solares, por exemplo, em cidades, em instituições públicas, para garantir a independência e a descentralização da produção de energia renovável.

Na área agroalimentar, Portugal tinha um potencial gigantesco, por exemplo, com os oceanos, para se tornar um exportador de matérias-primas, nomeadamente, por exemplo, de algas – a União Europeia importa 95% das algas, nomeadamente do mercado asiático. Nós podemos ser um grande produtor deste bem alimentar que não só tem uma pegada ecológica muito inferior, como é altamente nutritivo., como podia trazer jovens à indústria dos oceanos, das pescas, biotecnologia, engenheiros, construção, portanto é uma área fantástica, mas nós continuamos a olhar para o mar meramente como um local onde se pesca, ponto final, e pouco mais existe além da peca e turismo.

E mesmo na agricultura, a Dinamarca já tem uma estratégia, por exemplo, de promoção do sector de plant base, portanto, de proteínas vegetais, e não é porque eles querem que toda a gente seja vegetariana, flexitariana ou vegana, mas porque eles percebem que existe um impacto positivo dessa indústria. Eles querem estar na frente dessa biotecnologia, Portugal continua a querer fazer exatamente os mesmos modelos produtivos agroalimentares e, portanto, não tem uma visão estratégica a nível ambiental e económico nesse campo.

Se também olharmos para as florestas, é um fracasso total. A gestão florestal em Portugal continua a ser um fracasso e não só não temos o ordenamento do território como boa parte do território é privado e, portanto, ingovernável. Não existe uma estratégia nacional para se garantir a criação de corredores verdes, parques naturais mais biosustentáveis, que tenham atividades económicas regenerativas no seu seio. Há uma total falta de gestão territorial em Portugal e, naturalmente, as pessoas, por exemplo, que vivem no mundo rural, sentem-se abandonadas. Há uns tempos fui a Portalegre e nem sequer numa das zonas tinha acesso à internet. Hoje em dia, isso não é possível, nós vivemos sem acesso a internet. Temos de realmente olhar para o interior, olhar para o mundo rural de uma maneira diferente e não tentar a mesma solução que tem condenado ao fracasso estas regiões.

Quando falamos de descentralização da produção de energia, por exemplo, as opções no PRR ficam aquém daquilo que seria necessário?

Eu acho que sim, eu acho que ficam. Pese embora o PRR tenha lá elementos, por exemplo, de reforço das comunidades energéticas para esta parte da descentralização de produção, de distribuição e consumo de energias renováveis, porém, a fatia não é maior.

Existe ainda uma grande conceção ideológica e económica de concentração de grandes unidades industriais e eu acho que o caminho devia ser o contrário, mesmo para não estarmos não só expostos a uma vertente mais de exportação de energia, mas de resiliência energética, não só no que toca à produção agroalimentar, ela ser muito mais localizada, regionalizada, adaptada às condições climáticas das regiões.

Devíamos ter uma visão muito mais de resiliência, mesmo quando se olha para a capacidade industrial e, portanto, não estar tão dependente de subsídios. Na indústria agroalimentar é assustador o nível de dependência de subsídios europeus. Os subsídios, ou a visão macroeconómica e estrutural de alguns sectores devia ser para tornar cada vez mais independentes os sectores, o sector da construção, o sector agroalimentar, o turismo, transformando e não meramente um signatário de recursos, com o único objetivo de crescer sem qualquer plano estratégico.

Por exemplo, o turismo é algo que está a destruir as nossas cidades. Nós estamos a olhar meramente para o turismo como um agregador de valor monetário, sem contabilizar a total destruição das nossas urbes, em que nós já não vemos pessoas a viver dentro das cidades. A própria cultura que faz com que as pessoas visitem os locais está a desaparecer, os estudos de capacidade não existem, portanto, não é possível mais contabilizarmos o peso de milhões de cidadãos a vir para terminadas cidades no que toca ao uso de recursos e à criação de resíduos urbanos, por exemplo, à luz, água, no que toca ao emprego e à habitação. Não existem estudos de capacidade bem feitos e estruturados nestas vertentes todas e, portanto, ou nós planeamos o nosso país para os próximos 20 ou 30 anos ou vamos cair no erro de continuamente estarmos a planear para os próximos quatro e às vezes nem quatro anos, que os ciclos políticos agora já nem de quatro anos são.

Ainda estamos num debate [sobre] se construímos ou não aeroporto e onde, quando um debate, por exemplo, que já devia ter sido iniciado e não está na mesa que era a ligação de alta velocidade ferroviária entre Portugal e o centro da Europa continua numa gaveta. Não é possível nós planearmos um país e garantirmos a sustentabilidade desse próprio país se nós não planificamos a 20 ou 30 anos, incluindo questões climáticas que são fundamentais para a existência das cidades. As cidades não vivem sem o mundo rural, porque precisam dos seus alimentos, precisam da sua produção agroalimentar, e o mundo rural não vive sem o desenvolvimento tecnológico. Muitas vezes são feitos nestas áreas mais litorais ou urbanas e, portanto, tem de haver aqui também uma visão diferente da coesão territorial. Nunca esquecendo que nós também temos zonas de arquipélago e que essas mesmas também deverão fazer parte desta estratégia. E são muitas vezes esquecidas, infelizmente.

Produziu um documentário que foi divulgado há pouco tempo sobre os efeitos do consumo da carne. Como é que foi esta experiência? É para repetir?

Já repetimos. Ou seja, nós criámos um documentário “RBI, um caminho de liberdade”, no início do mandato, com dois episódios sobre a importância do rendimento básico incondicional. Portanto, falámos de como é que financiava, de como impactava o trabalho, a saúde, igualdade de género, etc. Isso foi feito e está disponível também online. E fizemos agora um mais curto, portanto, de uma hora apenas, sobre o impacto negativo na saúde humana, na ecologia, mas também nos direitos dos animais do excesso de consumo de proteína animal, e tenho tido um feedback muito positivo.

Há grandes diferenças. Grande parte dos comentários que são feitos a nível Internacional têm imagens de outros países, nomeadamente da China, Estados Unidos [da América], e este tem imagens, por exemplo, no que toca à produção agroalimentar, da Europa e de Portugal, e essas imagens demonstram que o nosso sistema agroalimentar está muito longe dos mitos bucólicos que se perpetuam, de que nós, realmente, temos o melhor sistema agroalimentar do mundo, que ele protege muito o bem-estar animal. Depois, também falamos cientificamente dos impactos na saúde humana, das doenças crónicas, do excesso de consumo de proteína animal, o impacto que ele tem no SNS, portanto, na visão de bem-estar individual e coletivo, e depois num dos grandes temas que é a parte ecológica.

Na União Europeia, o sistema agroalimentar conta com entre 25% a 32% das emissões de gases com efeito de estufa e é o maior elemento de destruição de biodiversidade que nós temos, é o maior consumidor de recursos aquíferos que nós temos e, portanto, é altamente insustentável o modo de produção agroalimentar, não só agropecuária, mas também de pescas, que nós temos e nós devemos efetivamente repensar, mas sem qualquer patamar moralista. Há uma grande diferença também no documentário que é: nós expomos os factos, expomos uma narrativa muito bem construída pelo realizador Hugo de Almeida e, depois, deixamos à consideração de cada um se quer fazer alguma alteração, se se revê nestes elementos. E temos tido um feedback muito positivo, temos ido a escolas, universidades, empresas. Temos tido um feedback muito, muito positivo. No site carnedoc.com todas as pessoas poderão encontrar esta informação.

E desde 22 temos o documentário disponível online para qualquer pessoa ver, de modo gratuito.

A questão ambiental é muito referida atualmente como causa do desacordo nas negociações entre a União Europeia e o Mercosul. A adaptação destes mercados emergentes às regras comunitárias é o entrave. É assim que deve ser visto? Justifica-se mesmo tendo em conta o estado de desenvolvimento em que estão os diversos países?

Justifica, até porque, primeiro, nós não somos um bom exemplo em matéria climática e, portanto, só por aí já temos muita responsabilidade, de qualquer das maneiras. Se nós acelerarmos estes processos de comércio internacional, nós não estaremos a beneficiar os países que são maioritariamente exportadores de matérias-primas, estaremos a acelerar a desindustrialização desses países. E eu vejo mesmo como uma segunda colonização destes países, porque, por exemplo, o Brasil, que é o maior país do Mercosul, tem um processo aceleradíssimo de desindustrialização e o reforço da importação destes bens agroalimentares irá reforçar a tendência.

Continuar a financiar estas indústrias, o desmatamento – não esqueçamos que, por exemplo, 70% da soja vai para gado nos países da América Latina, nomeadamente no Brasil – e nós não temos a capacidade de rastreamento destes produtos. Fará com que as bancadas mais ruralistas no Brasil, que estão diretamente ligadas a milícias e, portanto, que não têm qualquer pejo em não proteger a biodiversidade de um país tão maravilhoso como o Brasil sejam reforçadas e estes acordos internacionais vão também asfixiar os nossos produtores, acelerando o seu descontentamento. Portanto, não vejo com bons olhos o modo como se está a construir este programa, por exemplo, de trocas com o Mercosul, que ele vá criar algo positivo para qualquer um dos blocos.

Vai continuar ligado à política ou este é um ciclo encerrado?

Não, eu acho que todos nós estamos sempre ligados à política. Se me perguntar se vou estar nalguma instituição político-partidária, de momento não vou. Vou retirar-me para estar com a minha família, dedicar-me a escrever um livro e pensar em outros projetos, como é que poderia ajudar o meu país. E estou muito feliz de não passara tanto tempo em Bruxelas, porque aqui tempo é realmente penoso e eu adoro o meu país. Adoro a minha comunidade e, portanto, estarei sempre disponível para ajudar qualquer movimento democrático ecologista a singrar, e, no fundo, a experiência que eu adquiri durante estes anos ajudar-me-á e também ajudará a comunidade a crescer de modo mais sustentável. Portanto, contem sempre comigo, como é óbvio, mas, de momento, numa função remunerada político-partidária dentro das instituições democráticas, não, pelo menos nos próximos tempos.